RECEBA AS ATUALIZAçOES POR EMAIL

Insira seu email:

(o email para confirmar a ativaçao pode cair na sua caixa de spam. Verifiche-a.)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A ORGIA SE TRANSFORMA EM NATAL... O TRAVESTIMENTO DE UM VELHO RITO ROMANO DE HOMENAGEM AO DEUS CHAMADO SATURNO



SATURNALIA – TEMPO DE PRESENTES




Texto de Leni Ribeiro Leite (paginas 103-108) em:
ANAIS DA XXV SEMANA DE ESTUDOS CLÁSSICOS
Intertextualidade e Pensamento Clássico
13 a 16 de setembro de 2005
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS
FACULDADE DE LETRAS / UFRJ
Disponivel em http://www.letras.ufrj.br/pgclassicas/SEC-Textos-2005.pdf



    No começo de dezembro, escreve Columella, o fazendeiro deveria ter terminado sua plantação de outono. Então, no momento do solstício de inverno – 25 de dezembro no calendário Juliano – Saturno, o deus do plantio e da colheita, era homenageado com um festival. As Saturnalia eram oficialmente celebradas no dia 17 de dezembro (a.d. XVI Kal. Ian.) e, na época de Cícero, duravam sete dias, de 17 a 23 de dezembro. Augusto tentou limitar o feriado para três dias, de forma que as atividades civis não tivessem que se interromper por mais tempo do que o necessário, e Calígula estendeu-o para cinco dias. Ainda assim, parece que as celebrações continuavam acontecendo durante uma semana inteira, de acordo com Macróbio, com a troca das sigillaria, pequenas figuras de terracota ou prata dadas como presente.
     Macróbio, em seu livro denominado exatamente Saturnalia, cria uma simpósio imaginário entre intelectuais pagãos, que ocorre durante o período das Saturnalia. Em certo ponto, ele oferece uma explicação para a duração variada do feriado. Segundo consta, o feriado era originalmente celebrado em um só dia, 19 de dezembro (a.d. XIV Kal. Ian.). Com a reforma do calendário Juliano, entretanto, dois dias foram adicionados a dezembro, e as Saturnalia passaram ao dia dezesseis antes das Kalendas de janeiro, ou seja, dezessete de dezembro 
resultando que, já que o dia exato não era conhecido de forma comum – alguns observando a adição que César fizera ao calendário e outros seguinte o antigo costume – o festival passou a ser considerado como durando mais do que um só dia.
     O dia original havia sido escolhido em função da Opalia, em honra à deusa Ops, que personificava a abundância e os frutos da terra, e era a consorte de Saturno. Como as duas divindades representavam o produto dos campos e pomares, eles também representavam o céu e a terra. Era por esta razão, segundo Macróbio, que os festivais eram celebrados ao mesmo tempo, com os cultores de Ops sempre sentados em oração, de forma a tocar a terra, mãe de todos. 
    No calendário romano, as Saturnalia eram consideradas dias sagrados, ou feriados, em que ritos religiosos aconteciam. Saturno recebia sacrifícios; no Templo de Saturno, um dos mais antigos segundo os registros dos pontífices, construído para as Saturnalia, os pés da imagem do deus eram livrados dos fios de lã que o cingiam, para simbolizar a libertação do deus.
    Mas as Saturnalia eram também dias de festas. Após o sacrifício no templo, havia um banquete público, costume que, segundo Tito Lívio, havia sido iniciado em 217 a.C. Pode ter havido também um lectisternium, ou seja, um banquete para o deus em que sua imagem era colocada junto à mesa, como um conviva. De acordo com Macróbio, a saudação durante o período era “Io, Saturnalia”, que os participantes do banquete gritavam durante a festa no templo.
     As Saturnalia eram sem dúvida a festividade mais popular do calendário romano. Catulo as descreve como “o melhor dos dias”, no poema 14:

Nei te plus oculis meis amorem,
Iocundissime Calue, munere isto
Odissem te odio uatiniano;
Nam quid feci ego quidue sum locutus,
Cure me tot male perdere poetis?
Isti dei mala multa dent clienti,
Qui tantum tibi misit impiorum.
Quod si, ut suspicor, hoc nouum ac repertum
Munus dat tibi Sulla literator,
Non est mi male, sed bene ac beate,
Quod non dispereunt tui labores.
Dei magni, horribile est sacrum libellum!
Quem tu scilicet ad tuum Catullum
Misti, continuo ut die periret
Saturnalibus, optimum dierum!



Se não te amasse mais do que a meus próprios olhos,
Felicíssimo Calvo, por tal presente
Eu te odiaria com o ódio de Vatínio;
Pois o que eu fiz, o que eu falei,
Para que me perdesses com tão maus poetas?
Que os deuses mandem muitos males ao teu cliente
Que enviou a ti tantas coisas ímpias.
Se, conforme suspeito, este presente novo e inacreditável
Te dá Sila, o gramático, não me parece mal,
Mas sim bom e belo por não desperdiçares teus esforços.
Grandes deuses, que livro horrível e infame!
Este que sem dúvida tu deste a teu Catulo para que ele morra
subitamente
Neste dia de dons, das Saturnais, melhor dos dias!

     Neste poema de Catulo, encontramos o costume mais bem documentado dos dias das Saturnais: o de trocar presentes. As Saturnais eram uma ocasião para celebrações em que os amigos deveriam ser visitados e presenteados, inicialmente com as já mencionadas sigillaria e pequenas velas de cera (cerei), talvez para representar a volta do sol com sua luz. Também atesta o costume Petrônio, no Satyricon 56.7-10. No entanto, ao que tudo indica, logo os tipos de presentes foram significativamente ampliados, conforme documenta Marcial. Este autor nos legou dois livros inteiros de epigramas, intitulados Xenia e Apophoreta, exclusivamente compostos de dísticos que são dedicatórias criadas para acompanhar vários tipos de presentes. Cada pequeno poema tem um título, que nada mais é do que o presente que o epigrama deveria acompanhar. Considera-se que os livros teriam sido publicados em dezembro do ano 85 d.C. O primeiro contém poemas para acompanhar presentes de comida e bebida; o segundo, presentes de variados tipos, a serem dados aos visitantes. Estes livros são tradicionalmente numerados XIII e XIV, respectivamente, nas edições das obras completas do autor. 



[...]

     No entanto, nem todos parecem ter apreciado a festa, nem a apreciado da mesma forma. Sêneca, nas Epistulae Morales ad Lucilium, reclama que “toda a plebe se deixa levar pelos prazeres”. Plínio-o-Jovem diz que se retirava para seu quarto enquanto o resto da casa celebrava. Cícero ia para o campo. Aulo Gélio, nas Noctes Atticae XVIII. 2 conta que ele e seus compatriotas romanos se reuniam nos banhos em Atenas, onde estudavam, e faziam um jogo de perguntas e respostas e, caso ninguém soubesse responder à pergunta feita, deveriam dedicar uma coroa de louros a Saturno.
     Uma característica da celebração que ganhou em importância com o passar do tempo era que, durante o feriado, muitas restrições eram deixadas de lado, e a ordem social era invertida. Jogos de azar eram permitidos em público. Os escravos não precisavam trabalhar e podiam jogar com os dados; ao invés da toga, roupas menos formais eram permitidas (synthesis). Dentro da família, um “chefe do desregramento” era escolhido. Os escravos eram tratados como iguais, inclusive usando roupas de seus senhores e sendo servidos nas refeições. Essa igualdade era temporária, é claro, e Petrônio fala de um escravo imprudente que agiu em outra época do ano “como se fosse dezembro”.
     No fim do primeiro século d.C., Estácio ainda podia proclamar:

Por quantos anos este festival vai permanecer! Nunca a terra
deverá destruir dia tão sagrado! Enquanto as colinas do Lácio
permanecerem de pé, e o pai Tibre, enquanto romano e o
Capitólio estiverem firmes sobre o mundo, ele deve continuar.
     
     E a Saturnália de fato continuou sendo celebrada, como Brumália (de bruma, solstício de inverno) até a era cristã, quando, em meados do século IV d.C., seus rituais acabaram absorvidos pela celebração do Natal. Há quem diga que os cristãos do século IV apontaram o dia 25 de dezembro como o do nascimento de Cristo porque os pagãos já tinham esse dia como sagrado. Essa escolha evitaria o problema de eliminar um feriado muito popular e auxiliaria no processo de cristianização da população.
     No entanto, houve problemas, registrados em sermões e outros documentos eclesiásticos, em função das diferenças entre as celebrações, uma vez que já no primeiro século d.C. são registradas profundas alterações nos costumes das Saturnalia. O feriado em honra a Saturno parece ter-se degenerado para os excessos, marcados pela alteração de papéis sociais, e a liberdade de ação então proclamada teria sido a razão pela qual, já na era cristã, o termo saturnalia, em minúscula, seria sinônimo de ORGIA. Sêneca, dirigindo-se novamente a Lucílio, escreveu a respeito das Saturnalia romanas nos seguintes termos:

É agora o mês de dezembro, em que a maior parte da cidade está
em festa. Rédeas soltas são dadas para a dispersão pública, em
qualquer lugar que se vá são ouvidos os sons de grandes
preparações, como se houvesse realmente uma grande diferença
entre os dias devotados a Saturno e os dias comerciais. Se você
estivesse aqui, eu gostaria de debater com você se deveríamos ter
uma noite como as outras ou se, para evitar a diferença,
deveríamos ambos ter um jantar melhor e deixar de lado a toga.

A moral estóica, e depois a cristã, condenaram as Saturnalia, especialmente em sua faceta de inversão dos valores e costumes, tal como aconteceu com outras festas pagãs, vide o Carnaval, ainda hoje evitado pelos segmentos mais religiosos. No entanto, o costume da troca de presentes moderna pode ser traçado até as pequenas sigillaria, e não faltam a nós os banquetes com os amigos e família, regados a vinho e alimentos festivos, como agradecimento pela fartura, e como promessa de um novo ano de colheitas abundantes.


Referências bibliográficas:


BORNECQUE, H. & MORNET, D. Roma e os romanos. SP: EPU-EDUSP, 1976.
CATULO. O livro de Catulo. Trad. João Ângelo Oliva Neto. SP: EDUSP, 1996.
GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. 4. ed. RJ: Bertrand Brasil, 2000.
MARTIAL. Epigrams. Cambrige, Massachussets: Harvard, 1993.
SULLIVAN, J. P. Martial – The Unexpected Classic. Cambridge: Cambridge University, 1991.

Nenhum comentário: